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Processo TO - 27 de Janeiro, 2022

#68 Atraso global de desenvolvimento psicomotor – perspectiva clínica

Atraso global de desenvolvimento Psicomotor - Uma perspetiva clínica

Escrito por: Prof. Doutora Maria do Carmo Vale

  • O termo atraso de desenvolvimento psicomotor (AGDPM) é um termo abrangente, utilizado na literatura nacional e internacional, aplicável às crianças que não adquirem as competências psicomotoras consideradas normais para o grupo etário. Não tem o mesmo significado das dificuldades da aprendizagem, mas subjaz frequentemente a estas.
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  • Outras designações existem na literatura, entre elas a de atraso global de desenvolvimento psicomotor (AGDPM) frequentemente utilizada, apesar de não estar contemplada na Classificação Internacional de Doenças (ICD-10).
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  • Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM 5) considera a designação de atraso global de desenvolvimento psicomotor (AGDPM) aplicável a crianças de idade inferior aos 5 anos, que não atingem as competências expectáveis para o seu grupo etário em várias áreas do seu desenvolvimento psicomotor (DPM) e a crianças na primeira infância, quando o nível de severidade clínica é de difícil especificação e prognóstico, necessitando de reavaliações posteriores (Diagnostic and Stastitical Manual of Mental Disorders (DSM 5 – pág 41, 2013, American Psychiatric Association).
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  • Também a Academia  Americana de Pediatria (AAP) considera que a designação de AGDPM só é aplicável a crianças de idade inferior aos cinco anos, que apresentem atrasos significativos em duas ou mais áreas específicas (motricidade global, comportamento social e adaptativo, linguagem e compreensão, motricidade fina e coordenação óculo-manual e raciocínio prático), em oposição a grupos etários maiores em que a designação mais adequada será a de Incapacidade ou perturbação intelectual. Considera ainda que o AGDPM, sobretudo se ligeiro, pode ser um diagnóstico transitório e passível de normalização.
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  • Por outro lado, existe atraso significativo, quando a discrepância (atraso, demora) na aquisição de competências é superior a 25% ou 1.5 a 2 desvios padrão, comparativamente ao expectável para o grupo etário.
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  • Atento ao exposto e às definições da DSM 5 e da AAP, consideraremos a designação de atraso global de desenvolvimento psicomotor (AGDPM) como uma condição em que a criança, na faixa etária dos 0 aos 5 anos,  não apresenta as competências esperadas para a idade, ou estas vão surgindo mais tardiamente ou de forma desorganizada em, pelo menos, duas áreas.
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  • A definição não é consensual, tem gerado discordância e polémica entre os diferentes intervenientes, designadamente pais e profissionais, na medida em que induz os primeiros a percepcionarem a situação de forma errada ou incompleta (lentidão ou demora  temporária nas aquisições) e com bom prognóstico, o que nem sempre se verifica. Para os profissionais ligados à infância, sendo um termo ambíguo e genérico, não constitui  um eficaz instrumento de comunicação multidisciplinar condicionando, por vezes, descoordenação e desarticulação no processo de habilitação/reabilitação.
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  • Apesar de o reconhecermos como insatisfatório, o termo AGDPM será, em nossa opinião, o mais aceitável, tem a vantagem de não “rotular” indevida e intempestivamente uma criança cuja permanente evolução coloca grandes expetativas e desafios, sem limitar apoios e cuidados médicos, uma vez que, em Portugal, a criança continuará elegível para apoio, de acordo com a idade e necessidades, quer através do Decreto-Lei n.º 54/2018, de 6 de julho, que estabelece o regime jurídico da educação inclusiva, quer do Decreto-Lei n.º 38/2004, de 18 de agosto, que define o regime jurídico da prevenção, habilitação, reabilitação e participação da pessoa com deficiência. Ambos são baseados em competências e funcionalidades observadas, em detrimento do diagnóstico biomédico.
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  • (Nota de editor: o novo DL 54/2018 não implica a necessidade de diagnóstico para obtenção de apoio, mas considera as Necessidades de Saúde Especiais para diferenciação do apoio prestado).
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  • Para além do AGDPM é importante detectar desvios do normal, ou se¡a, a aquisição de competências e capacidades fora da sequência habitualmente observada (um exemplo é o da criança com paralisia cerebral que devido à hipertonia dos membros inferiores, faz apoio em pontas, dificultando ou impossibilitando a aquisição da posição de sentada ou de gatinhar).
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  • As dissociações ou desarmonias do desenvolvimento ocorrem quando a criança apresenta diferentes velocidades de aquisição em vários domínios do seu desenvolvimento. Por exemplo, as crianças com autismo apresentam um atraso de linguagem e perturbação do comportamento social, comparativamente à motricidade global ou realização. Mais raramente, deve ser ainda considerada a regressão, ou se¡a a perda de aquisições ou competências anteriormente observadas, situação rara, mas presente em doenças neurodegenerativas ou  metabólicas.
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  • Como é óbvio, é fundamental conhecer o desenvolvimento psicomotor normal da criança dos 0-5 anos, bem como as variantes do normal.

Epidemiologia

  • Em Portugal a incidência e prevalência de atraso global de desenvolvimento psicomotor é uma incógnita, mas a Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que pelo menos 10% da população dos diferentes países é constituída por indivíduos portadores de qualquer tipo de deficiência, designadamente 4 a 5% das crianças de idade inferior aos  5 anos apresenta AGDPM e é mais frequente no género masculino.
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  • Os progressos na área da Medicina (vacinação, antibioterapia, medidas avançadas de suporte de vida) condicionaram uma redução da mortalidade e morbilidade infantil. Contudo, esses mesmos progressos são responsáveis pela maior sobrevivência de recém nascidos pré termos, grandes pré termos e muito baixo peso que apresentam maior incidência e prevalência de morbilidade em pediatria do neurodesenvolvimento, designadamente de AGDPM.
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  • Este decorre de variadas patologias e condições de deficiência que podem surgir desde a concepção, gestação e parto (doença neurológica congénita ou adquirida, factores genéticos, etc.), a factores adversos ambientais (hábitos alcoólicos parentais, desnutrição, perturbação da díade, ambiente sócio- familiar pouco estimulante, iliteracia parental) e acidentes ou causas externas.
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  • Os progressos na área da Medicina (vacinação, antibioterapia, medidas avançadas de suporte de vida) condicionaram uma redução da mortalidade e morbilidade infantil. Contudo, esses mesmos progressos são responsáveis pela maior sobrevivência de recém nascidos pré termos, grandes pré termos e muito baixo peso que apresentam maior incidência e prevalência de morbilidade em pediatria do neurodesenvolvimento, designadamente de AGDPM.
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  • Este decorre de variadas patologias e condições de deficiência que podem surgir desde a concepção, gestação e parto (doença neurológica congénita ou adquirida, factores genéticos, etc.), a factores adversos ambientais (hábitos alcoólicos parentais, desnutrição, perturbação da díade, ambiente sócio- familiar pouco estimulante, iliteracia parental) e acidentes ou causas externas.

História Clínica

  • Anamnese

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  • Os estudos mostram que os pais têm razão até prova em contrário e que devem ser atentamente ouvidas as suas preocupações.
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  • A abordagem de uma criança com AGDPM é baseada na história clínica minuciosa que visa obter informação relativamente aos antecedentes familiares (idealmente árvore genealógica das três gerações precedentes), referente ao período perinatal (gestação, parto e período neonatal), à evolução e aquisições de DPM, patologia anterior, etc…
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  • Uma história clínica englobando, por rotina, a área do DPM ao pesquisar as principais aquisições e competências, é insubstituível no diagnóstico atempado de atraso, dissociações, desvio ou regressões.
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  • Exame objetivo

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  • Em caso de suspeita de AGDPM ou perturbação do comportamento, é fundamental uma avaliação formal, em contexto, ou baseada nas rotinas (testes, checklists) efectuada por profissional competente e experiente. O instrumento ideal será um adaptado e validado para a população infantil a avaliar, com propriedades psicométricas e de funcionalidade, de fácil e rápida aplicação e com adequada sensibilidade e especificidade.
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  • A observação clínica, deve incidir sobre eventuais anomalias ma¡or ou minor (dismorfologia) e sinais neurológicos e ou comportamentais que possam sugerir o diagnóstico de um sindrome ou patologia clinicamente identificável de que é exemplo a trissomia 21.
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  • Diagnóstico Diferencial

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  • O diagnóstico diferencial contempla as perturbações da comunicação, da linguagem, do espectro do autismo, a paralisia cerebral, a falta de estimulação e investimento afetivo e diádico (crianças institucionalizadas), défices sensoriais (auditivo e visual), etc.
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  • Exames Complementares

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  • Após pormenorizada avaliação clínica, há que proceder a uma criteriosa e parcimoniosa utilização de testes genéticos, imagiologia e recurso às especialidades necessárias para o diagnóstico etiológico. Cariotipo convencional, estudo molecular do síndrome X-frágil, análise por microarray de alta resolução, sequenciação de nova geração (next- generation sequencing – NGS), em que existem quatro tipos:
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  • -Painel multigenes
  • -Sequenciação do exoma associado a patologia do exoma clínico
  • -Sequenciação do exoma completo (WES – Whole Exome Sequencing)
  • -Sequenciação do genoma completo (WGS – Whole Genome Sequencing)
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  • Salvo raras exceções, o cariotipo convencional não é presentemente utilizado como exame de primeira linha, atendendo às suas limitações, tendo sido substituído pelas técnicas de microarray de alta resolução e pela sequenciação de nova geração, graças às quais se tem adquirido maior conhecimento, com redução significativa dos casos de etiologia idiopática.
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  • A literatura não restringe a aplicação destas tecnologias à gravidade do atraso ou perturbação, sendo exames de primeira linha no atraso global de desenvolvimento e incapacidade ou perturbação do desenvolvimento intelectual de qualquer gravidade.
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  • A etiologia multifatorial (fatores ambientais, sociais, económicos e genéticos) podem-se conjugar, condicionando o atraso global de desenvolvimento, e incapacidade ou perturbação intelectual ligeira.
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  • A imagiologia poderá ser um exame de 2ª linha e a tomografia axial computarizada (TAC) ou ressonância magnética (RNM) do sistema nervoso central (SNC) estará indicado em crianças com micro ou macrocrânia e ou sinais neurológicos focais ou sinais de regressão e não deve ser considerado uma prática standardizada ou mandatória segundo o American College of Medical Genetics Consensus Conference Report, devendo ser ponderada caso a caso.
  • Em síntese, a conduta a observar perante uma criança com GDPM, contempla:

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  • 1) Efetuar história clínica e árvore genealógica familiar  de três gerações; observação clínica – pesquisa de sinais de dismorfologia e exameneurológico.
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  • 2) Se o diagnóstico clínico é efetuado com base na clínica (Trissomia 21), confirmar através dos necessários exames complementares de diagnóstico, providenciar fontes de informação à família e, de acordo com esta, delinear plano/programa de habilitação/reabilitação e aconselhamento genético, detalhando tratamento e prognóstico, numa perspetiva realista.
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  • 3) Se um diagnóstico específico é suspeito, planear os estudos adequados designadamente a análise por microarray de alta resolução e pesquisa do potencial gene implicado.
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  • 4) Se o diagnóstico é desconhecido e não aparente devem ser efetuados sequencialmente:
  • – Análise por microarray de alta resolução;
  • – Estudos metabólicos, nomeadamente: homocysteina sérica total, perfil acyl-carnitine aminoácidos séricos, ácidos orgânicos, glycosaminoglycanos e oligosaccharidos urinários, purines, pyrimidines, GAA/creatine.
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  • 5) Se não há diagnóstico presumível:
  • – Pesquisar história familiar ligada ao X, painel completo de genes ligados ao X frágil (que contém os genes não sindromáticos ligados ao cromossoma X) e sequenciação de nova geração, conjuntamente com geneticista.
  • – Se a criança é do sexo feminino: ponderar deleção, duplicação e sequenciação completa do gene MECP2.
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  • 6) Se apresenta micro ou macrocefalia ou exame neurológico alterado (sinais motores focais, extrapiramidais, epilepsia intratável ou convulções focais) efetuar RMN do SNC.
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  • 7) Ponderar referenciação a outras especialidades, nomeadamente às especialidades de genética, doenças hereditárias do metabolismo, ORL, oftalmologia, medicina física e reabilitação, neuropediatria, etc.
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  • 8) A inexistência de um diagnóstico biomédico não justifica a não referenciação ao SNIPI ou serviços da comunidade, ou procrastinar um plano/programa de habilitação/reabilitação à criança e família. Adiar a intervenção terapêutica, com base nesta premissa é comprometer o desenvolvimento da potencialidade funcional de uma criança com AGDPM, pela perda de oportunidades inerentes à neuroplasticidade deste grupo etário.

 

  • Tratamento

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  • O diagnóstico etiológico, com recurso a técnicas complementares anteriormente referidas e a especialistas considerados fundamentais é fulcral para:
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  • 1) Estabelecer terapêutica específica (epilepsia, doença metabólica ou outra).
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  • 2) Desenvolver um plano de habilitação/reabilitação da criança, em parceria com a família e os serviços existentes na comunidade.
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  • 3) Em caso algum a orientação referida no ponto 2 deve ser procrastinada, nomeadamente em função da existência de um diagnóstico biomédico. Basta o diagnóstico funcional para desencadear programa de intervenção.
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  • Evolução

  • O AGDPM pode ser causado por situações parcialmente reversíveis como a doença crónica com necessidade de múltiplos ou longos internamentos, institucionalização prolongada ou desnutrição. Pode ainda ser a primeira manifestação de incapacidade ou perturbação do desenvolvimento intelectual ou perturbação de atenção e concentração.
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  • A evolução/prognóstico vai depender do diagnóstico etiológico e funcional da criança e do seu enquadramento familiar, social, cultural e político, de fatores facilitadores (pais, docentes) ou de barreiras (como a resistência à inclusão, à mudança), nos vários cenários onde a criança se desenvolve.
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  • Referência: http://www.pedipedia.org/pro/artigo-profissional/atraso-global-de-desenvolvimento- psicomotor

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